Ensaio: Do Grito Rock São Carlos - Continuando.


Este ensaio dá continuidade ao texto publicado aqui na ocasião do Grito Rock de 2009, em que falava-se do evento em São Carlos e de seu organizador, o Massa Coletiva, numa de suas primeiras grandes ações feitas na cidade. A bem da verdade, tomou-se ali o Grito Rock e o Massa como exemplo para pincelar as ideias que giravam ao redor da lógica estabelecida em torno dos festivais de música independente, as bandas que deles participam e o público que os assiste.

Na época, nos trouxeram várias críticas em cima das próprias considerações daquele texto, que falava numa menor escala da lógica envolta no mercado paralelo que é a música independente e apontava com maior destaque os entraves por ele gerados a evolução enquanto forma e conteúdo da música, deixando de lado questões como a visibilidade e até certo o respaldo ganhos por este mercado. O texto ainda é pertinente dentro destes aspectos, quase passível de republicação mudando-se tão somente a data, já que não houve grandes mudanças neste cenário. Contudo, algumas justificativas carecem de maior delonga, então, eis aqui outra tentativa.

Naquele texto de 2009, houve interessantes réplicas nos comentários de Cardelli, vocalista e guitarrista dos Visitantes. Contudo, lá não se falava em falta de originalidade por parte das bandas, como inferia Cardelli, mas sim da estagnação em torno de forma e conteúdo e mesmo da estética por elas produzida. Estagnação, senão retrocesso, que ainda assim dá margem a originalidade, mas frente a insistente pós-modernidade na mescla de gêneros e elementos étnicos recai na fórmula maceteada usada por um sem número de nomes da música hoje.

De todo modo, a crítica daquele texto não era tímida, só era ponderada, porque de fato há aspectos interessantes nessa história toda. A crítica, na verdade, reside no simples fato de que nada se faz de diferente falando dos festivais do independente, coletivos e afins. Cria-se apenas um mercado paralelo, uma franca necessidade dos tempos em que implode o número de bandas e o acesso a elas fica facilitado, pela velocidade tanto da produção musical quanto de sua divulgação em função do mar de tecnologia aberto nos últimos vinte, trinta anos, mas mais especialmente na última década. E este mercado não é recente, provavelmente sempre existiu, sob diferentes óticas, em diferentes momentos.

Por exemplo, hoje mesmo, tomemos das metrópoles, grande São Paulo. Essa articulação lá não parece precisar de fato dos coletivos, acontecendo de uma maneira ou de outra. Tanto que o grande coletivo paulistano é o próprio Massa Coletiva, em São Carlos. Não seria estranho pensar no representante estadual dentro do Fora do eixo estando fora da capital? Mas faz todo sentido. Em tempos de ALTERCOM, São Paulo tem canais de comunicação demais, muita informação transitando nos meios, sendo tão fácil chegar as pessoas que algumas preferem a inanição a aproveitar o que a cidade oferece. Fato é que em São Paulo o mercado independente e o mercado convencional se mesclam, em certa medida, de tal forma que é difícil desvincular um do outro, aos olhos menos atentos. Fora dos grandes centros esta iniciativa é provavelmente necessária para fazer tudo acontecer, do contrário o mundo iria definhar, já que o grande mercado ali não chega. Afinal, não é essa a ideia, fora do eixo? Que eixo? Rio-São Paulo. Curitiba, Brasília, em menor escala. Porto Alegre?

Inegavelmente há uns vários aspectos interessantíssimos dos festivais envoltos na rede estabelecida de música independente, em específico do dito Grito Rock, que nunca deixo de comentar. Depois de limpar os pés no capacho da porta de entrada do ano, se cria uma outra agitação para a época de Carnaval, colocando indiretamente alguns questionamentos a esta conturbada e polêmica festividade. Afora isto, quando se põe em xeque desta maneira muitas das atividades desenvolvidas na linha destes festivais, outros produtores não ligados a estes coletivos e alheios a esta lógica acabam empolvorosos. E vale destacar que este mercado é cada vez mais monstruoso ao perceber como é exponencial o número de cidades envolvidas nos festivais, bandas circulando e público participando.

Um reflexo da forte articulação destes coletivos é por exemplo a possibilidade de bandas ligadas a estes atravessarem em menos de um mês as cidades de um estado inteiro, senão várias cidades ao longo do país, pelo Grito Rock. Os Rélpis, de Araraquara, ligados ao coletivo Colmeia Cultural, e o Aeromoças e Tenistas Russas, de São Carlos, ligados ao Massa Coletiva, são exemplo notável disto. A despeito da boa qualidade do material, sem esta ponte propiciada por iniciativas como as do Toque no Brasil, portal que agenciava bandas, casas de shows e os coletivos para o Grito Rock, bem como o apoio e articulação dos Coletivos, eles não teriam conseguido esta visibilidade tão facilmente. Logo, conquistaram o Estado, especialmente porque os dois shows estão muito bons, a ponto de precisarmos resenhar Os Rélpis com urgência e re-resenhar AeTR, com o repertório muito mudado já.

Há ainda o mérito do desenvolvimento sustentável, a patavinha da economia solidária e tudo o mais, mas não vamos entrar nesta discussão no momento, deixamos as considerações pobres mesmo neste quesito.

Retomando, como bem é mostrado no Identidade Musical usando da palavra de Luiz Tatit, sempre houve o independente, o artista a margem das grandes gravadoras ou mesmo de qualquer gravadora, que acumulava tanto a função técnica quanto a artística. Afinal, as verdadeiras demos não eram fitinhas com um nome escrito na fita crepe a caneta? E em alguma instância, a grande maioria tanto de antes quanto de agora invariavelmente pensa em atingir, senão o grande mercado das gravadoras, pelo menos o status dos artistas delas.

Sendo bastante pragmático, me apoio mais uma vez no texto do Carlos Rogério do Identidade Musical, apontando que os modelos continuam os mesmos e o público mal sabe a valorizar os projetos ousados. Mas aquela conversa sobre estagnação rivaliza com os projetos ousados. A questão é que mesmo os projetos ousados, citados por Carlos Rogério, como Macaco Bong e Porcas Borboletas, não o são tanto assim. Macaco Bong bebe de muitos elementos lá de fora, vide Russian Circles. Porcas, poutz, já me eram óbvias influências da estranhamente desconhecida Vanguarda Paulistana antes mesmo deles surgirem junto do Paulo Barnabé. Claro, nem por isso deixamos de gostar e desmerecemos. É bom trazer estas influências, é bom mostrar ao mundo que mais há, é bom inseri-las aqui, e é bom fazer o que se quer.

Se é que ainda não se aponta armas às bandas que continuam a produzir seguindo modelos velhos ou inserindo-se em fórmulas já concebidas de inovação, o que se questiona aqui faz muito tempo é o papel destes coletivos todos, destes festivais todos, enfim, da música independente, em mudar esta concepção estabelecida e tão enraizada do que é fazer música. Acontece que o interesse destes grupos não é mudar isto, pelo menos não o que importa. Afinal, é notório que toda esta rede é uma mercado paralelo, uma indústria exatamente como o mainstream, com um modelo de negócios como bem diz Pablo Capilé para O Inimigo ou como Bruno Nogueira no Pop Up! afirma ao apontar o caráter de feira de negócios que se vê na Feira da Música do Circuito Fora do Eixo. Quase demora pra se perceber isto. E o pior é que todos eles tem plena consciência disto. E não se importam. Afinal, é um ganha-pão. Engraçado é que eles debatem, insistem na proposta, vendem a ideia a todo custo, mas nunca dizem quanto ganham.

Aí, é mais demorado ainda perceber que não, eles não estão aí pra mudar o modo de fazer música. Não é o interesse deles, talvez sequer seja seu papel. Eles estão aí para mudar o modo de vendê-la. Ou não mudar, mais propriamente, apenas encontrar alternativas para fazê-lo. No termo 'mercado da música independente', a música é a mesma, só muda o mercado. Parafraseando o bom dito do nobre Djalma Nery Ferreira Neto, a música independente é feito a abolição da escravatura: É só uma conjuntura da lógica de mercado se adaptando a novas condições sociais.


6 comentários:

Ney Hugo - Cubo Comunicação disse...

Só pra deixar claro, eu nunca tinha ouvido falar de russian circles até ler esse texto. O kayapy ja itnha ouvido falar, mas nunca foi referencia pro macaco bong. abs.

Vanderlei Reis disse...

Antes a todos os demais, mas também ao Ney,

Tomei do Macaco Bong apenas como exemplo para justificar que mesmo os trabalhos mais ousados, que ainda passam desapercebidos ou sem a devida relevância, também recaem num pós-modernismo inato.

Logo, nos servia de comparação, necessária, mas talvez apenas em parte. Enquanto influência, era apenas um "ansatz", bem possível. Mas de todo modo, e imagino que você entenda isto também, não raro é chegar por dois caminhos diferentes a uma mesma resposta.

E, considerando ainda que se há similitude nos dois trabalhos, também há enormes diferenças.

Mas, claro, não é este o ponto do texto.

Abraços,

Independência ou Marte disse...

Cara, não dá para deixar de criticar o lado academicista em excesso no texto, que fala de um processo que está sendo feito com muito trampo, propositividade, pé no chão e maturação intensa de uma inteligência coletiva.
Na real, não ficou claro o ponto de intersecção nos pontos tocados entre a questão estética, política e os novos paradigmas de mercado. Dá margens a leituras de ser um pensamento soberbo, que não propõe nada construtivo.
Além disso, tem algumas pérolas conceituais e distorções que podemos conversar melhor pessoalmente mesmo...

Jovem

Vanderlei Reis disse...

Jovem,

A abordagem tida como academicista é necessária. Eu a considero ainda bastante simplória na verdade, só pincelando elementos que se bem explorados poderiam vir a ajudar a esclarecer a questão.

Outro adendo que faço, já que talvez o fato não esteja claro no texto, é que concordo plenamente que o caráter dos coletivos, festivais e toda a movimentação da música independente é perfeitamente válido, em alguma instância. Por vezes, é instigante inclusive.

Contudo, reitero que o brilhantismo da iniciativa é sustentado apenas enquanto a encaramos como outra abordagem ao mercado. Só por isso, já há muitos méritos, mas não deixa de ser mantida a crítica.

E se ela não é clara, é justamente porque o pensamento em torno da questão (ainda) é difuso. A verve de uma resposta concreta a questão não é simples, provavelmente nem passível de antecipação. Talvez, de premeditação. Nisto, mesmo o papel estabelecido nestas redes todas pode vir a ser fundamental.

Quanto aos elementos citados, enquanto forma e estética e a ridicula influência mercadológica se encarados enquanto interseção, a diferença dos conjuntos é vazia. Aqui confesso uma falha grave ao não-esmiuçar a apresentação destes termos. Tenciono fortemente trazer algo orientado em outro texto, de modo a suplementar a questão.

E, por último, claro, sempre estou aberto a conversa. Só temos a crescer dialogando a respeito. MAS, o espaço aqui está aberto para qualquer comentário ou texto que venha a contrapor as colocações dadas.

Abraços,

Vanderlei.

Jaguadarte disse...

Ok, meu turno.

Vou só fazer um trampo analítico, quase sem entrar nas temas abordados, e atentar pro fato de que nosso amigo Jovem não traz nada de novo a discussão, se limitando a atacar o texto sem clarificar o que nele "dá margens a leituras de ser um pensamento soberbo" e quais seriam essas tais "pérolas conceituais" e "distorções". Particularmente, o uso do termo "distorção", sim, aparenta um certo tom de soberba. Afinal, é necessário que a discussão esteja encerrada para podermos indicar possíveis equívocos conceituais.

Quanto a crítica a possível falta de clareza quanto a intersecção dos temas (e, de fato, eu não vejo o motivo pelo qual eles devam se tocar para tornarem-se legítimos) só é sintoma do mesmo erro aparentemente cometido ao dizer que existe a possibilidade de ler ao texto como sendo algo que não propõe nada de construtivo: oras, o que está sendo proposto, antes de qualquer coisa, é uma reflexão sobre os temas. Acreditar que tal reflexão não traz nada de construtivo só faz sentindo se os bastiões do discurso questionado estiverem plenamente convictos do que professam, o que transformaria a isso tudo numa questão de fé e encerraria o debate.

Além do mais, esse "conversar pessoalmente" parece uma tentativa de mover a discussão para fora desse espaço que, antes de tudo, é público. Que esta discussão seja realizada a olhos plenos parece ser do maior interesse de uma iniciativa idônea.

No mesmo espírito de recomendação, atento para o fato de que o tom geral do comentário dá margens para uma interpretação de que trata-se de uma tentativa de desqualificar ao texto sem a apresentação de argumentos para tanto. Mais uma vez, a menção do termo "soberbo" soa como uma tentativa de desabonar o autor (o nome técnico pra esse tipo de falácia, se for o caso, é 'argumentum ad hominem').

Em suma, creio que o debate será proveitoso e que a realização do mesmo neste espaço ou, ainda, em um fórum mais amplo, o será ainda mais. Entretanto, debates demandam a apresentação de argumentos.

Anônimo disse...

É engraçado - para não dizer triste - ver cada um defender o seu: os envolvidos supostamente denegridos, uma vez que sentem-se lesados por realizar uma atividade não tão altruísta e engajada assim (ou melhor, engajada no bojo da mesma engrenagem que segue rodando desde que a mercadoria e o fetichismo ocupam o papel central em nossa prática de relações), criam argumentos para desclassificar o texto, como se antes viesse a certeza e depois a conversa.

O problema é ser construtivo: esse conceito de positividade intimamente ligado à construir, como se destruir também não fizesse parte do mesmo processo.