'Eis que um de nossos mais inalienáveis “bens” vem nos sendo subtraído; herdada de abismos inescrutáveis da cosmogonia humana, uma de nossas mais revolucionárias faculdades – nossa capacidade de produção – vem nos sendo escamoteada. Ou talvez convenientemente reaproveitada, servindo de contribuinte para o megalomaníaco processo de idiotificação e pasteurização de nossa arte – que é nossa vida, e vice-versa. Processo que vem sendo empreendido – na acepção mais atual do termo – basicamente, por dois arquétipos de “produtores artístico/culturais”. O primeiro deles encontra-se suficientemente acomodado (e confortável) no status quo elitista e raso das reais possibilidades de produção autêntica – infelizmente cada vez menores e mais assustadoras, na medida em que o senso de oportunismo geral estabelecido entre os indivíduos impulsiona-os para a coisificação de suas subjetividades, para a produção cada vez mais extenuante e repetida do “mais do mesmo”, já que esses mesmos indivíduos sabem que serão recompensados e ovacionados pelo público passivo – platéia apática – caso sigam corretamente a cartilha vigente, as pegadas dos grandes beneficiários da mesmice. O segundo tipo de arquétipo (nessa visão conscientemente generalista) revela-se naqueles que nutrem infinitas esperanças de “ascensão”, motivo pelo qual lhes interessa sustentar de alguma maneira essa supérflua palhaçada cotidiana que vivemos. O primeiro desses arquétipos de repressor – o estabelecido – ocupa um lugar de destaque, lugar de honra, privilegiado em nosso modelo de organização social igualmente repressor e castrador. Ao segundo – escravo com síndrome de senhor – cabe um lugar mais obscuro, perigosamente subterrâneo na corte de nossa “monarquia global”; esgueirando-se qual abutre por entre as carnes suculentas dos Escolhidos pelo deus Mercado, aguardando o dia do banquete da redenção, estão pacientemente esperando o dia em que da carne podre dos assassinados, nascerão novos Escolhidos, orando para o mesmo deus. Crescidos do ventre dos antigos, igualmente vampirescos neste macabro ciclo de substituições, se encontra este segundo tipo de agentes da mesmice.
E devido às ações destes dois grupos é que está em perigo nossa capacidade de criar – fagulha de vida, força criativa. Cada qual a sua maneira, ambos compartilham de objetivo comum: explorar até o esgotamento tudo o que pode ser explorado no terreno em que atuam. Isso inclui explorar – de acordo com interesse do “mais forte”, do dominador – também essa capacidade criativa de todos aqueles que a possuem, ou seja: todo e qualquer ser humano.
Obviamente, tudo isso é parte e reflexo de um modo de pensar convenientemente estabelecido, de um sistema de produção e de um modo de relacionar-se inundado de uma lógica quantitativa – em detrimento de uma qualidade autêntica – e ascensional.
Eis o que poderia visar, recuperar e manter em resistência uma massa coletiva que se aglomere e organize: a possibilidade de viver verdadeiramente suas produções e, por conseguinte, produzir verdadeiramente a partir de sua vida, aproximando os nossos reais anseios de nossa arte, e afastando esta de um caminho de obrigações falsas para atingir um patológico reconhecimento ou acúmulo – seja de capital, seja de glória, seja de vaidades, todas desnecessárias para a prática coerente de nossas aspirações e consciências. Podemos querer – a despeito do caráter aparentemente irreal ou pueril dessas afirmações – produzir as nossas próprias vidas, sem terceirizar tão insubstituível tarefa. Reclamamos o direito de viver aquilo que nós mesmos criamos, e não algo previamente escolhido por outrem.
Logo, não tencionamos ser senhores e tampouco escravos com síndrome de senhor – pequeneza de espírito dos humilhados em posição de se vingar – como nos mostra Machado de Assis em seu Brás Cubas, através do personagem Prudêncio, o escravo da casa sempre tomado por montaria que, mais adiante, faria questão de montar também; não tencionamos cavalgar em costas alheias, seja por vingança, seja por privilégio. Porém, igualmente, a partir dessa nova consciência, podemos tencionar, agora sim, carregar com energia o peso de um novo mote: não mais nos deixaremos cavalgar.'
Texto à muito engavetado, expressão do amigo Alma Méry. Necessária a publicação, já que vem e continuará permanecendo verdadeiro, não nos esquivamos deste papel e aqui está.
2 comentários:
Manda a referência aí.
Não creio que haja referência imediata, senão aquela já citada na nota de rodapé.
E ali, são acúmulos do autor. Especularia, por exemplo, a leitura de Walter Benjamin.
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