Resenha: Arrigo Barnabé e Banda Sabor de Veneno: Clara Crocodilo - Theatro Municipal, Virada Cultural 2009

Dentro do Theatro Municipal de São Paulo durante a Virada Cultural paulistana a proposta é sempre resgatar os álbuns de destaque de artistas que marcaram época e apresentá-los na íntegra, como no original. Mais uma vez este ano a seleção era boa, com Arrigo Barnabé, Egberto Gismonti e Tom Zé entre outros nomes.

Entre as duas primeiras, optamos por Arrigo, não só pelo gosto pessoal, mas pela representatividade enquanto obra experimental e mesmo importância enquanto produção independente da década de 80. Claro que era já a segunda oferta para conferirmos Egberto Gismonti na Virada, lembrando que o mesmo show não aconteceu em 2008, mas precisávamos ver Clara Crocodilo, expoente da Vanguarda Paulistana.


As expectativas para esta apresentação eram bem altas, já que nunca havíamos visto Arrigo, muito menos interpretações de Clara Crocodilo. O álbum, em si, reflete muito daquilo que incentivamos e invariavelmente gostamos. Quando o cenário do Rock tornava-se enfadonho há trinta anos, este álbum abria novos rumos, enxergava uma nova vertente, ao aproximar o estilo à música erudita, numa dialética então pouco natural especialmente no Brasil. Aqui, seria leviano tratá-lo como Rock Progressivo, que vem abarcando nomes a torto e a direito por falta de taxonomia melhor, como o próprio Rock Independente.

Abordando muito da cultura, ou contracultura, dos anos 1980 envolta numa estória absurda, com influências dos quadrinhos, praticamente numa homenagem ao Lagarto, personagem das histórias do Homem-Aranha, do cinema, das tiradas das Pornô Chanchadas aos contos de terror e ficção científica, e muito do pop vigente a época, com as corridas de autorama, fliperamas, o Ford Maverick, fazia-se uma obra urbana, refletindo muito da época ao mesmo tempo em que fazia contravenção ao que se retratava no período, ao escancarar hábitos promíscuos da sociedade e antevendo temas como a indústria genética.

E este texto era a abertura de pensamento para a verdadeira revolução auditiva, mudando o pensamento estético da música da época ao afastá-lo da idéia de produto da consonância, ao usar de atonalismos e elementos caóticos.

Nas apresentações ao vivo, podia-se pensar que tudo não passava de linhas de improviso, uma grande jam, quando na verdade tudo não passava do fruto de inúmeros e exaustivos ensaios. Contudo, este experimentalismo era perfeitamente dirigido, passível de assimilação pelo público. Dotado do pensamento arquitetônico, construído, projetado, planejado por quase uma década, usando recursos de módulos e séries na composição, as dissonâncias estavam dentro de elementos rítmicos, que apesar de complexos, faziam uma harmonia, descentrada, se é que isto é possível. Era uma desorganização de elementos apenas aparente um caos verdadeiramente estruturado.

E justamente estes elementos rítmicos refletiam uma transição de ritmo vislumbrada em outras linguagens de arte serial, como os quadrinhos e o cinema. Ali se criava o corte de cena, o enquadramento, tudo transposto a música.

E além da música bárbara, a letra das composições narra dois ou três arcos de estórias que podem muito bem ser encaradas em separado, como enxergadas como um todo. Tanto é que Clara Crocodilo, além de álbum, também já foi peça de teatro, quase ópera, quase dança, nas mãos de diretora Lala Deheinzelin, também em 1980, ano de lançamento do disco. Faltam nossos nomes nos quadrinhos, desenhistas e roteiristas adaptarem a história para o acabamento no gibi que ela merece como foi feito com o segundo álbum de Arrigo, Tubarões Voadores, nas mãos de Luís Ge.

Claro que o cenário da música brasileira na época era diferente. Não havia os processos da mídia, hoje massacrantes, nesta preocupação com vendagens que torna a música completamente comercial. Mesmo o cenário independente hoje não consegue fugir desta máquina, servindo quando muito de trampolim para que bandas atinjam o status necessário ao mainstream. Àquela época, mesmo no fim da era dos festivais, havia o forte meio universitário realmente imbuído deste pensamento vanguardista, procurando o novo, aberto às novas idéias deixando margem para que houvesse a aceitação daquele som diferente.

E era isto que estávamos ali para conferir neste espetáculo. Já a entrada dos músicos, um a um assumindo seus lugares, aparecia a ansiedade do público, aplaudindo de mansinho. Havia deixando apenas o vazio do piano, que ultimamente seria logo preenchido por Arrigo, trazendo plenamente o Theatro em palmas. Já para a primeira faixa, escolheram Sabor de Veneno, como que apresentando a banda que trinta anos atrás também performava as mesmas composições.

Isto não necessariamente ia contra a proposta de tocar o álbum na íntegra, apenas criava diferentes climas para a noite. Retomando os eixos, vinha Acapulco Drive-in, dando início a uma das linhas de estória narradas na Ópera Clara Crocodilo. Fizeram-no com uma introdução aparentemente nova, como que aquecendo para trazê-la completamente. E, começado o álbum, também tinham início as encenações do que nos é cantado: Arrigo tirava um molho da chaves do bolso, como o coroa do Maverick da letra de Acapulco, enquanto uma das meninas que faziam as vozes busca em cima do piano a bolsinha que roda na esquina da rua, insinuando-se para o primeiro.

Estranhamente até aqui vínhamos sem guitarra, que estava com problemas no cabo do amplificador, mudo. Nisso, enquanto a técnica do palco sanava o problema, foi a deixa para que Arrigo cria-se outro momento no meio do show, fugindo do álbum Clara Crocodilo, para exaltar a voz de Vânia Bastos, a menina de vermelho das duas ali, numa canção acompanhada apenas pelo piano do mestre.

Com a guitarra já engatilhada, seguindo com Clara Crocodilo com Orgasmo Total. Surgem as primeiras risadas no salão, reafirmando o tom de chanchada do álbum, com as primeiras falas de Arrigo na letra, enquanto nossas moças vêm a frente do grande palco do Theatro, se insinuando para a platéia.

Resta saber se as risadas não eram também daquelas nervosas, servindo para abafar o choque, primeira impressão ao se ouvir o álbum na época de seu lançamento e que ainda parece persistir nestes tempos. Esse choque foi imediatamente sentido por alguns que começaram a deixar a apresentação, quem sabe indignados com aquelas provocação, quem sabe pegos de surpresa apenas pela fama do nome de Arrigo Barnabé, sem entender a proposta ali.

Isso porque faltaram alguns dos gemidos, como bem disse Arrigo ao vivo. Claro que estavam lá os "Ahh, ahh, ahh" a cada "Juro que eu nunca imaginei", afinal estava entregue o orgasmo das meninas. Ficava a promessa de um destes também à platéia pensante, com entrega pelo correio.

Contudo, o clima anos 80 não parecia estar tão presente, daquela aura que o álbum transmite muito bem nos timbres de teclado, "modernos" naquela noite. Talvez, fossem as muitas audições do álbum que fizeram-nos acostumar com essa sensação ou talvez fosse a própria "Sabor de Veneno" que deixou aquela década apenas gravada no nome, e, na memória, imprimindo aqui nova identidade ao som.

Para a próxima faixa, nossa menina de vermelho berrante, Vânia Bastos agora buscava em cima da cauda do piano o xale preto e os óculos escuros, entrando em luto por seu marido perdido. Era o anúncio de Infortúnio, contando-nos esta trajetória da viúva que cai em promiscuidade, outro tapa na cara do ouvinte.


A cada faixa, Arrigo rege a Banda Sabor de Veneno, andando pelo palco de um lado para o outro, pedindo ora para diminuir o peso dos instrumentos, ora para trazer um vibrato aos metais.

Chegava um dos momentos altos do álbum-ópera Clara Crocodilo, com Diversões Eletrônicas. E mais uma vez nossas meninas fazem, como sempre, uma pequena encenação a cada faixa. Dessa vez, eram as luzes do fliperama traduzidas no piscar de suas mãos, a cada vez que o título da faixa era dito. Dá pra conferir na gravação upada no YouTube a seguir! E até que o áudio está razoável.



Aqui poderia-se lamentar por um dos poucos males de se assistir a apresentação da quinta sessão: a perda da pessoalidade, o vínculo criado entre Arrigo, meninas e platéia, enquanto encenavam a nossa ópera Clara Crocodilo. Contudo é interessantíssimo assistir a tudo de uma vista superior, podendo observar cada detalhe. E, do fundo mesmo, sentir momentos únicos, como quando com os três a frente do palco, Arrigo, longe do microfone, vira de soslaio para a platéia e canta um dos muitos versos "fórmica vermelha", ouvido claramente em todo o ambiente, mostrando a excelente acústica do Theatro.

Chegando a metade da apresentação, era a hora de introduzir os integrantes da Banda Sabor de Veneno. Arrigo nos dá os nomes e congratulações a cada um: vinham nossas já citadas damas, fazendo as vozes, Vânia Bastos e Suzana Salles, ainda tão belas e sexy como dantes, senão mais; Tonho Penhasco na guitarra, das primeiras formações da Banda; Paulo Barnabé na bateria, um dos irmãos de Arrigo, também desde o começo da história de Clara Crocodilo, também da Patife Band; Mário Campos no baixo, instrumentista e arranjador; Bozzo Barretti, aquele mesmo do Capital Inicial, outro da formação de sempre da Sabor de Veneno, ao lado de Paulo Braga, de outros trabalhos com Arrigo, atacavam nos teclados, usando o "uniforme" original da banda, a roupa de presidiário; Nos metais, vinham Chico Guedes, no sax tenor, Mané Silveira, no sax alto, e Ronei Stella no trombone, todos do grupo original da Banda Sabor de veneno.

Também ali nos foi revelado uma novidade das mais interessantes, com Arrigo anunciando que sairá um CD de Clara Crocodilo ainda nesse semestre. Seria boníssimo que fosse apenas a remasterização das fitas originais do LP, nem chegando perto da regravação desnecessária A Saga de Clara Crocodilo, trazendo Clara Crocodilo todo rearranjado. E jabá a parte, nos contentaríamos com outro material, de Arrigo e Paulo Braga, em duo de pianos gravado ao vivo em Porto com os principais temas de Clara Crocodilo, sendo vendido no saguão do Theatro

Continuando o enredo e adentrado seu excerto final, Office-boy dá início ao último arco das estórias narradas em Clara Crocodilo. Com Arrigo de pé, a frente dos metais, regendo em tempos estranhos, sinalizava-se a entrada de cada outro naipe de instrumentos na música, na sua introdução. E desta vez, era o sinal do redemoinho hipnótico, visto na TV por Durango, nosso personagem office-boy, que as moças gesticulavam enquanto cantavam. Sinal hipnótico que resultaria no final catastrófico, transfomando-o no monstro Clara Crocodilo.


E neste nome, fica a dualidade entre a harmonia, Clara, iluminada e a dissonância, negra, perdida num pântano, Crocodilo, transposta naquela sonoridade. Vale lembrar que o nome é paralelo com o título do poema Aura Amara, do poeta do século XIII Arnaut Daniel, onde há também esta contradição entre o etéreo da aura e o amargo amaro.

E vale aqui destacar que este não era um espetáculo de Arrigo Barnabé apenas, mas sim de Arrigo Barnabé e da banda Sabor de Veneno, como muito bem anunciado durante toda a Virada e no próprio ingresso do teatro. E não é de se duvidar que a execução deste álbum por outros que não estes beiram o impossível. Por exemplo, nesta faixa, todos os sons "espaciais", o mínimo barulho dos ventos, tudo é feito ao vivo, usando dos teclados e guitarra.

E, encerrando o arco, finalmente a faixa título, Clara Crocodilo. Usando de uma metalinguagem sem igual, aqui se confunde o monstro Clara Crocodilo, a personagem, com o próprio disco e proposta Clara Crocodilo. A música é o monstro e o monstro é a música, atacando não só a cidade da história, mas ao ouvinte, levando-o a loucura. E essa é uma proposição que Arrigo faz, conversando com seu espectador justamente, convidando-o a desvendar este mistério, quase que duvidando de sua inteligência. Pareceu-nos que foram suprimidas algumas das narrações da faixa. E numa dessas narrativas deixadas de lado, o mais interessante é que Arrigo canta (ou narra, mais propriamente) no disco que aquele seria uma peça de colecionador, daquelas que só se acha em sebo, que serve para poucos. E realmente, não há gravações em CD, temos apenas o LP. E mais verdadeiro ainda, não é um trabalho que muitos apreciem.

E parecia que se encerrava o espetáculo esquecendo-se de tocar Instante, que destacaria a voz de Vânia Bastos ao lado apenas dos metais. Apesar de finda a estória nossa e os músicos deixando o palco do grande Municipal, não, as palmas não deixariam acabar tão fácil este momento, que Arrigo confessionava antes não acontecer desde 2005, com todos tocando juntos. As luzes do teatro ainda diminuídas eram o prenúncio de um bis, senão planejado propositadamente, como sempre, devidamente autorizado pela produção do espetáculo: Suave Veneno, agora com a guitarra, já que haviam ficado devendo a contento.

E deixaram Instante de fato sem ser tocada. Talvez, seja um apelo, já que ela anunciava o desaparecer de Clara Crocodilo, em metáforas e mais metáforas. Assim, fica a tentativa de deixar a personagem o monstro, o disco, a música, a idéia, soltas por aí.

Quando se lançou o disco, era uma produção independente, do ainda não nascido indie, ancorada por Robinson Borba. Isto refletia a indisposição da época para com esta proposta. Apesar da genialidade da obra ter sido reconhecida ainda lá atrás, na década de 1980, aparenta que o grande público permanece a parte deste meio. E nisso os próprios músicos não estão em posição muito melhor. Paira um marasmo sobre a música vigente, mesmo a mais underground, cult ou intelectual. Seja no Rock, com o cultivo disfarçado de resgate dos grandes nomes de décadas passadas ou a cópia descarada de estilos lá de fora, seja na MPB, estagnada também na aposta de imitar os grandes letristas feito Chico, Gil e Caetano, ou antes, ainda Vinícius.

Contudo, há esperança de que, como Arrigo, com uma formação erudita ao mesmo tempo em que com o ouvido no mundo, aliado a nomes como Itamar Assumpção, autodidata de percepção única, influenciados pelo meio acadêmico, surjam novas propostas mais uma vez, dentro das universidades quem sabe.

Agora, confira também nosso texto sobre a apresentação de Iara Rennó na Virada AQUI, algumas outras impressões mais gerais NESTE e veja uma bela coletânea de fotos no nosso Picasa. Para nos acompanhar sempre, assine nosso feed RSS! E pra mais um monte de informações, links e novidades, siga nosso Twitter!

Fotos: Fernanda Serra Azul

Um comentário:

Ed Man disse...

Muito bom o texto, parabéns.